A Dança no Antigo Egito

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“A morte está hoje diante de mim,
como a cura para um doente...
como o perfume de mirra...
como o aroma das flores de lótus...
como o odor depois da chuva...
como o desejo ardente de um homem
de retornar ao seu lar,
após longos anos de cativeiro...”

O canto da Harpista (em WILSON,pag45)


No Egito antigo, a dança comemorava, ritualmente, a experiência de enxergar a vida através da morte, visto que a exaltação do próprio fim os auxiliava a desfrutar melhor suas vidas. Essencialmente agricultores, os egípcios dividiam o ano em três estações: a semeadura, a seca e a colheita, cada período justificado pelas condições naturais e pela cosmogonia.
            A dança oferecia uma concepção da vida como um todo, pontuada pelo nascimento e pela morte, preenchia, portanto, uma função sagrada para os egípcios, e estava vinculada também à existência profana. Todas as realidades vitais eram consagradas pela dança conferindo um poder pulsante, sagrado e vivo.
            Havia três categorias de dançarinas: a profissional dos vilarejos, a dançarina dos palácios e a sacerdotisa.
            A primeira, pertencente às famílias da sociedade egípcia, conjugava as manifestações sagradas e profanas através da sua dança, nas tabernas ou festas religiosas, construía com seu corpo o imaginário fantasioso das imagens totêmicas, misturando deuses e demônios dentro da oposição entre sexualidade vital e a morte.

A festa religiosa mais conhecida referia-se a uma deusa de fertilidade, Bastet,[1] a divindade gato protetora das mulheres. Herodotos teve a oportunidade de presenciar e descrever estes rituais. Nesta festa se dirigiam, Nilo abaixo, inúmeras barcas lotadas de homens e mulheres, mas conferia às mulheres a atenção do ritual.

            Algumas portavam sistros[2] que não cessavam de repicar coreadas pelas palmas e cantos dos demais, algumas mulheres continuavam suas ondulações, vibrações, outras insultavam as vizinhas com uma histérica gritaria, ao mesmo tempo em que dançavam, incansáveis, levantando suas saias com provocações eróticas e gesticulando de forma obscena.
            O historiador grego Herodotos descreveu o ritual realizado anualmente em Busiris, onde segundo ele, estava o maior templo de Isis:

São conduzidos (as imagens de Osíris) através do povoado, por mulheres; um flautista vai na frente e as mulheres o seguem cantando hinos a Dioniso (Osíris).” (Herodotos II, 59)

A segunda categoria de dançarina morava no palácio faraônico, funcionária ou escrava/concubina, comprada, ou capturada como uma prenda de guerra do exército faraônico. Sesóstris III, faraó que marcou o período da expansão militar egípcia também denominado Médio Império,  gravou a respeito de si próprio, em uma estela de pedra:

“Capturou todas as mulheres e os súditos do reino africano, queimando o gado e a plantação.”

Além das escravas vindas da Síria, Mesopotâmia e até dos confins da India, Sesóstris trouxe escravas núbias, muitos caras na época pois, dançavam freneticamente vibrando bustos e quadris de uma forma diferente, que provavelmente apelidamos, nos dias de hoje, de shimmy.
Nos palácios, concentravam mulheres de diversas culturas e com elas diferentes tradições culturais.
Dessa fusão, um estilo de dança, que até hoje não sabemos exatamente como era, pois o que nos restou foram afrescos e descrições de viajantes. Acredita-se que as dançarinas interpretassem sob a melodia de harpas, flautas e triângulos de metal, enquanto as vozes chorosas das recitadoras, declamavam desenfadados versos de amor.
É possível também que estas mesmas profissionais foram precursoras da almeh, uma espécie de trovadora medieval a ser descrita mais adiante.

A terceira categoria de dançarina, temida até mesmo pelo faraó era a sacerdotisa, consagrada aos deveres mais sérios da sociedade egípcia, como por exemplo, manter a paixão dos deuses. A dança mística expressava os amores entre Isis[3] e Osíris de forma sensitiva, artística e erótica. Tratava-se de uma pantomima mística, em que as sacerdotisas personificavam a deusa e realizava os amores à Osíris frente ao sacerdócio masculino também personificado.

Com efeito levam tirsos, gritam e se agitam como os possuídos por Dioniso quando celebram suas orgias.” [4]


Através do mito de Osíris[5], os grandes rituais religiosos conjugavam os dois extremos da existência: a vida e a morte, numa fusão entre Fortuna[6] e Fado[7], como forma de justificar que seus corpos eram tão efêmeros, quanto, a vegetação do Nilo.
Os funerais funcionavam como grandes espetáculos, cortejos gigantescos constituídos de dançarinas, músicos, acrobatas, sacerdotes com máscaras zoomórficas e muitas carpideiras. Durante a comemoração da morte e ressurreição de Osíris, as dançarinas sagradas ondulavam seus corpos, possuídas por uma espécie de êxtase, abatiam-se como palmeiras ao vento, vibrando seus corpos perfumados e revelando através da transparência de suas roupas, as belezas do corpo.
Durante as festas profanas a morte recordava os egípcios da brevidade da vida, como novamente descreveu Herodotos, num banquete onde o anfitrião trazia um boneco de madeira, finamente talhado, dentro de um esquife  e cantava:

"Olha para isso!  Bebe e diverte-se,
pois será assim depois de morto."[8]

Essa filosofia de Carpe Diem, fazia do calendário egípcio um amontoado de festas sobre a vida dos deuses e sobre o gozo diário da existência.
Sem uma moral rígida acerca das mulheres, a educação feminina compreendia o estudo das artes do amor manifestas através da dança e do canto. A mulher desfrutava do amor matrimonial, ondulando, voluptuosamente, os braços e o ventre sem timidez. Num papiro estão escritas as seguintes frases:


"Se sois discreto,
Tu encerrarás em tua casa e amarás nela
A tua mulher, alimentarás bem, a adornarás,
Porque os vestidos de seus corpo, os perfumes
Serão a alegria de sua vida."

           
Haviam festas privadas nos recintos familiares, dependendo da classe social a casa poderia comportar uma troupe com cem profissionais, entre bailarinos e músicos, já nas moradas mais simples, as próprias filhas do anfitrião dançavam para seus convidados.

 


HERODOTOS. Historia {Tradução Mário da Gama Kury} Editora da Universidade de Brasília, Brasília.1985.
MASPERO, G. Au temps de Ramsés et d'Assourbanipal. Libraire Hachete. Paris.1927.
MASPERO, G. Histoire Ancienne des Peuples de L'Oriente. Libraire Hachete.Paris. 1912.
PLUTARCOOs Misterios de Isis e Osíris. São Paulo. Nova Acrópole do Brasil Centro Editora, 1981.

 

[1] Aspecto de Isis, entidade protetora das mulheres e de sua sexualidade. Era venerada na forma de gato ou leopardo.
[2] Instrumento musical: espécie de tridente com moedas
[3] consorte de Osíris, Princípio feminino criador, semelhante à Deméter grega.
[4] PLUTARCO, 1981.p. 6.
187)
[5] Osíris, deus da fertilidade, dos mortos, como Urano é um deus castrado, feminino.
[6] Vida, Eros,ritmo cômico de celebração da vida.
[7] Tânatos, a morte, o indivíduo e o seu destino,
[8]HERODOTOS. Historia.1985.p.78.

2 comentários:

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